sexta-feira, 5 de março de 2010

O reflexo "eléctrico" da cidade em dois tempos...

São diferentes. Agem de forma semelhante, mas a simpatia é em grande parte superior à encontrada nos autocarros. Uns mais velhos, outros de passagem. De casa para o trabalho, ou apenas em turismo, todos têm uma coisa em comum - são passageiros. Pela manhã, acompanhado de uma simpática saudação, transporta-se um perfume apetecível e que nos deixa a pensar no apetecível banho que tomámos antes de sair de casa. Mas o pior é quando depois deste momento de - diria - prazer, se desmancha com o entrar de um odor insuportável pela porta onde entram diariamente, estudantes, idosos, doutores, engenheiros, sapateiros, costureiras, turistas, entre outros...

«Ó riqueza, deixa-me sair aqui pela porta da frente que vou muito carregada», diz uma senhora que acaba de vir do supermercado com uma quantidade de sacos, que nos leva a pensar
que o mundo acaba já amanhã. É assim quando se passa na Boa-Hora com destino à Ajuda, onde o eléctrico é realmente uma grande ajuda para subir a colina.

Ao virar da esquina, automóveis que circulam no sentido oposto, teimam em não facilitar a passagem do eléctrico que tem de ocupar a via contrária. Resta-nos esperar até que alguém decide realmente ceder passagem ao transporte mais antigo da capital. Ponto a ponto lá vai o 18E subindo rumo ao Cemitério da Ajuda, onde termina mais uma viagem no meu primeiro dia de trabalho nesta carreira.

Os dias seguintes são na 25E e aos poucos vou retendo as principais dicas que me vão sendo transmitidas pelos colegas que nos acompanham nos primeiros dias. Mais experientes e conhecedores das zonas a ter em atenção, sobretudo pelo desrespeito que ainda persiste pelo eléctrico, vão-nos dizendo como agir perante determinado cruzamento ou arruamento. Mas ao final da tarde uma senhora já com alguma idade, agradece-me por ter parado na paragem - coisas de antigamente - e com ela vem o tal cheiro que se entranha durante algum tempo a bordo de um transporte que é por sinal arejado.

Trata-me por chefe. Parece que é da praxe, segundo outros guarda-freios e despede-se dizendo «ó chefe pare aí nessa paragem e se não se importa deixa-me sair pela porta da frente...» Se nos autocarros já se ouvia este pedido com alguma regularidade, aqui repete-se em todas as viagens. As dificuldades na locomoção aliadas ao receio de não serem vistas pelo guarda-freio na porta traseira, leva-as a sentarem-se logo no primeiro lugar que encontram ao entrar, o que nem sempre é a melhor ideia, porque nem a janela da frente aberta ajuda.

O dia seguinte é de manhã e pelo movimento na Avenida 24 de Julho, a noite foi longa e com muito álcool à mistura. A saída da estação é rumo à Rua da Alfândega e enquanto uns acordam para mais um dia de trabalho, outros estão a caminho da cama. Em Santos, mandam parar o eléctrico. A porta abre-se e do lado de fora apenas dizem «Bom Dia!». Só queriam mesmo "brincar" sendo "simpáticos" com quem já estava a trabalhar. Diferentes maneiras de distracção.

A bordo ia já um senhor que se inteirava das últimas notícias que publicava o Diário de Notícias. Chegamos ao Cais do Sodré e uma outra Lisboa. Do lado direito saem pessoas apressadas, outras distraídas. Bem dizia o formador que o guarda-freio tem de ter sete olhos! A campainha do eléctrico raramente é respeitada, mas serve de alerta. Do lado oposto um jovem cambaleia entre o passeio e o corredor BUS. Descanse que não houve nenhum sismo com epicentro no Cais do Sodré! É apenas mais uma das vítimas de um descontrole provocado pelo álcool e que obriga a quem ali circula a passar com velocidade reduzida.

Já a meio da manhã e com alguns pingos de chuva à mistura, alguns turistas no terminal da Rua da Alfândega entram no eléctrico rumo aos Prazeres. Nos olhos, o brilho de uma alegria imensa de entrarem num transporte único. O lugar à janela é o mais apetecido e por norma cedido às senhoras. Assim foi. Durante a viagem, tiram fotografias, comentam a riqueza das arcadas da Praça do Comércio, que contrastam com as obras que persistem, ou a acalmia da Lapa. A chegada aos Prazeres traz um misto de satisfação e de tristeza. Chegava ao fim a viagem.

Regressam na viagem seguinte ao ponto de partida, porque soube a pouco e lá fora está a chover. Chega também ao fim o meu dia de trabalho e termina a primeira semana que mostrou uma Lisboa em tudo diferente, em tudo igual. Uma Lisboa em dois tempos, em duas carreiras. Uma cidade onde acima de tudo adoro viver e onde gosto de trabalhar. Valeu a pena esperar três anos, porque o futuro começa agora...

Boas Viagens!

10 comentários:

Vasco Lopes disse...

Mas que inspiração, Rafael...!
De facto não é fácil fazer as primeiras viagens da manhã, sobretudo aos sábados e domingos, tal é a quantidade de meninas e meninos que andam para aí a cambalear na berma da estrada. Mas tirando isso, acredito que até se faça bem pela fresquinha. Abraço e até um dia destes ;)

Anónimo disse...

rafael tenho uma madrugada para quarta na 35 e acaba no cais sodré queres trocar? lol.
marques

Rafael Santos disse...

Marques,

É das poucas carreiras que me deixa saudades. Mas se quiseres na quarta tenho 25E :P É só por e tirar corrente. Simples

CR 35 disse...

Rafael,nem vale pena trocar a 35 pela 25E já que devido ás interrupções são sempre desviadas as chapas da 35 e como já tens carta de serviços públicos e matricula de guarda freio quando houver interrupções conduzes o autocarro que achas?

Angelo disse...

Que belo texto!

André Bravo Ferreira disse...

Apetecível! Até dá vontade de perder um dia de aulas e andar de eléctrico.

Grande abraço.

Joanika disse...

Adorei, adoro andar de eléctrico.
Na verdade um dos meus prazeres de estudante universitária a viver nesta cidade que não é a minha, é passear e conhecer lisboa. Em tempo de primavera/verão é andar pelas ruas, ar livre. E andar de eléctrico, não pode faltar!
Aliás, tenho comentado muito nestes dias, a saudade que tenho de passear de eléctrico em dias de sol...

Boas viagens! ;)

Nuno Pato disse...

Rafael; você é uma inspiração...um bom vendedor! O entusiasmo que revela é deveras cativante. Mas... Não me consegue tirar da borracha. Tenho consciência que as casas amarelas da Carris são um símbolo da cidade, no entanto, o gosto pela borracha tambem é adquirido e entranha-se!
Essa do "chefe" e dos cheiros é comum...como sabe!
Felicidades nas novas rodas; e que a Carris consiga cativar para guarda-freios e para motoristas colaboradores como nós: pessoas que gostam do que fazem...e ainda nos pagam!!!

Anónimo disse...

pagam, mas pagam pouco :-).

Blackbelly disse...

Parabéns Rafael!

é por causa de si que agora, sempre que entro num autocarro ou electrico, desejo os bons dias ao condutor :) Não o fazia por achar que já não ligavam! Mas realmente um Bom Dia fica sempre bem em qualquer lado!

Nunca o apanhei na 35...Será que o apanho agora na 28?

Um desejo de boas Maniveladas!

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