domingo, 3 de janeiro de 2010

Quando as dores afectam a audição, a explicação torna-se complicação

Quem ainda acredita que esta profissão de motorista não tem interesse nenhum, está profundamente enganado. Quais são as profissões que permitem que durante o seu período de trabalho se veja e aprenda uma eternidade de coisas? Poucas ou quase nenhumas! Mas ser motorista de um autocarro, numa cidade como Lisboa, permite-nos ouvir histórias do arco da velha, constatar através de alguns passageiros, as consequências que faz uma solidão e em alguns casos ser o muro de lamentações de muitos que não têem com quem desabafar.

Por muito que por vezes se tente manter uma certa distância, a porta da banqueta serve de apoio a uma conversa, que em alguns dos casos é "arrancada a ferros" pelo passageiro. Outros há que ocupam as cadeiras até ao terminal, para ali saírem e voltarem a entrar para regressar ao ponto de partida. São viagens que servem para passar o tempo, nem que seja, apenas para sair de casa.

Mas engraçado nesta profissão, é também o facto de passado algum tempo, adivinhar-mos algumas das reacções e objectivos dos passageiros que vamos transportando. A certa altura entramos num estilo «piloto automático» e já sabemos que aqueles que dão passagem aos restantes passageiros, na paragem de Alcântara, por exemplo, tem apenas como objectivo, criar uma barreira para que entrem à borla, como se o motorista nada percebesse. Sentem-se naqueles momentos, como os grandes artistas se sentem quando cativam o público nos seus espectáculos, mas com uma diferença: o olhar de esguelha, para ver se o motorista é assim tão distraído.

Hoje por exemplo, quem parecia estar algo distraído, era o senhor que entrou na paragem da Casa Pia, com destino ao Bairro Madre Deus e que originou mais um daqueles diálogos que parecem por á prova o motorista, se não vejamos...

Passageiro com o seu sotaque alentejano e já na casa dos 70 anos entra no autocarro, dando as boas tardes, mostrando que ainda é de outras gerações e diz que pretende ir para o Bairro Madre Deus.

Motorista: «Então, acertou em cheio no autocarro. É só sentar-se (dado que já tinha validado o título de transporte) e esperar pela última paragem...
Passageiro: «Não senhorii. Eu quero a penúltima, porque moro no Largo da Madre Deus há pouco tempo, sabi?»
Motorista: «Ah então é da zona...»
Passageiro: «Mas o que eu queria, era que o meu amigo me disséssi era qual a camioneta que devo apanhari p'ra ir jantariá Rua de São Paulo, na volta do regresso.»
Motorista: «Então apanha o primeiro que aparecer. Se for o 742, desce aqui no Museu do Azulejo e apanha o 794. Se for o 759 a aparecer primeiro, pode descer na P.Comércio, ali perto da estação dos barcos e apanhar o 794 que é o que lá passa...»
Passageiro: «Mas não ta compreendendo? Eu só quero apanhar quando for jantar, mas não sei é qual é que vai daqui para lá.»
Motorista: «Directo, o senhor não tem nenhum. Tem sempre de apanhar dois e é os que já lhe disse».
Passageiro: «Então é o 742 que me leva até lá né verdadi?»
Motorista: «Ou o senhor não ouve bem o que lhe digo, ou então expliquei-me mal...»
Passageiro: Não. Sabe é que eu tenho uns problemas... Vou ser operado a uma hérnia e amanhã vou ao hospital... Mas então é o 794, é isso?»

E lá lhe tive de explicar de novo como haveria de fazer para chegar onde pretendia. Lá entendeu e pediu desculpas, mas como fez questão de repetir, estava com uns problemas porque ia ser operado a uma hérnia.
Como se não bastasse este discurso, com o qual até eu fiquei baralhado, com o facto como umas dores de uma hérnia tiram qualquer um do seu estado normal, ainda tive de levar na viagem imediatamente a seguir com um grupo de jovens que entraram no Calvário e decidiram por-se aos berros uns a favor do Benfica e outros do Sporting. E como berros é algo que já vai sendo hábito na 742, o resultado só poderia ser acabado o serviço completamente cansado e com uma forte dor de cabeça.

Foi mais um dia e amanhã logo se verá como será. Boas Viagens!

6 comentários:

Angelo disse...

Só espero que recuperes rapidamente!

Rafael Santos disse...

Caro Angelo,

Agradeço a sua preocupação, mas as dores eram do senhor que tinha uma hérnia e não minhas :)

Felizmente vou estando bem de saúde.

Um abraço.

CR 35 disse...

Vá.lá! esse utente era só para a conversa, mas existe algum povo que retarda a entrada para os outros passarem sem validarem qualquer titulo de transporte outros, para darem á língua para ver se também passam ,este povo pensa que os motoristas ou GF só por olharem para o lado para fazerem o troco ou qualquer outra coisa passam despercebidos ,esquecem-se que os veículos da CCFL transportam todo o tipo de povo e basta estarem nas paragens para entrar que os mais experientes adivinham pela postura ,movimento ,olhar e mais alguns pormenores se está legal ou pretende fazer outro coisa qualquer .E o povo nem com mapas ou GPS vai lá ,é o fruto do nosso SALAZAR.Boas viagens a bordo de todos os veículos da CCFL

Anónimo disse...

não é fruto de salazar, se tivessemos no tempo dele esta gente não andava de borla de certeza :-), até eram corridos a pontapé pelo motorista.

Anónimo disse...

Anónimo das 09:17,

Fique lá com o seu Salazar que eu não o quero para nada. 50 anos de ditadura bastou. Salazar só nos trouxe miséria, económica e cultural. Leia alguma coisa que não seja a bola ou o record que lhe faz bem.

CR 35 disse...

Povo!bola! de cristal?record de quê ? de analfabetos? o povo nem lê os jornais distribuidos gratuitamente, os avisos nas paragens,os livros distribuidos a bordo dos veículos da CCFL que depois ficam espalhados intactos em cima dos bancos e por vezes postos nos caixotes do lixo directamente sem passar pelos olhos do povo! mas quando entra um indivíduo para fanar carteiras passar á frente do povo nas paragens, ser mal educado ,não pagar um bilhete de transporte ,levar música em altos berros, pequenos delinquentes a responderem mal a pessoas que hoje têem mais de 50 anos que viveram no tempo da ditadura e nada fizeram para que a geração mais nova tivesse um caminho mais favorável para poderem evoluir limitando-se a jogar ás cartas e a dar milho aos pombos espalhados pelos parque das cidades reclamando das miseráveis reformas e dos sucessivos governos, perante algumas destas situações ,clamam pelo SALAZAR para que pudesse endireitar este pequeno País afinal o SALAZAR se calhar só fez mal a algum Povo ,e se, hoje temos liberdade de expressão aos nossos soldados o devemos ,e se não queremos outro SALAZAR,lutemos como Povo unido para um País melhor.Boas viagens a bordo dos veículos da CCCFL.

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