quinta-feira, 11 de novembro de 2010

«Contas são contas!»

É 1h20 da madrugada e acabo de chegar a casa - cansado -, vindo de um serão da carreira 28E, e o que me apetece mesmo é estender as costas e preparar-me para mais um dia de trabalho que se aproxima. Contudo, hoje entrou-me um passageiro já a meio da noite que pela a sua atitude, me leva a estar ainda aqui a transcrever-vos no blogue.
Se por vezes são as coisas negativas que nos chamam mais a atenção e nos deixam a pensar, hoje é diferente. O frio caiu em grande na cidade de Lisboa e a noite foi portanto muito calma e com poucos turistas à procura do eléctrico 28E. Os poucos passageiros que fui apanhando entre o M.Moniz e os Prazeres estavam apenas de regresso a casa depois de mais um dia, mas outros limitavam-se a procurar um local mais acolhedor. 

Na Rua da Conceição, entrou-me um senhor, com aspecto de ser mais um dos sem abrigo da cidade, num estado que não era propriamente o mais indicado para se transportar num transporte público, não só pelo cheiro como pelo asseio, mas não fui capaz de  lhe negar o acesso. Ao contrário do que previa, disse-me «Boa noite!»... Pousou os sacos que trazia consigo junto ao lugar que havia escolhido e solicitou-me um bilhete.

Junto ao controller (equipamento à esquerda do guarda-freio, onde através da manivela se liga e corta a corrente, orientando a marcha do veículo), abre um embrulho de papel com algumas moedas que talvez tenha conseguido ao longo do dia e com algum custo. Aos poucos junta 1.45 €, enquanto a máquina imprime o bilhete. Entrego-lhe o bilhete e depois veio a parte que me faz ainda estar aqui a escrever este texto. Agradece-me e deixa 1 cêntimo em cima do controller e diz «ontem fiquei a dever 1 cêntimo, portanto aqui está!»

Surpreendido, digo-lhe que esqueça o cêntimo, até porque não tinha sido comigo que tinha ficado a dever o dito cêntimo, mas não tardou muito para me dizer que «não me interessa. Contas são contas e se ontem fiquei a dever 1 cêntimo, hoje quero dar-lhe o cêntimo». E com esta, provou-me uma vez mais que nem sempre é preciso estar bem vestido para se ser sério. A consciência e seriedade já está no instinto da pessoa. 
Já na Rua dos Poiais de São Bento, pede-me para sair pela porta da frente e agradece uma vez mais toda a atenção que havia tido com ele. Agora já posso ir descansar, porque esta história vivida esta noite, tinha de fazer parte deste diário e deste «retrato» do dia-a-dia de um transporte público numa cidade como Lisboa.

Boas Viagens a bordo dos veículos da CCFL!

7 comentários:

Pia disse...

É este tipo de coisas que nos põe a pensar, nos aquece a alma e, por vezes, nos mostra que afinal temos alguns preconceitos errados...realmente quem vê caras não vê corações!!

maria disse...

E fez bem contar este episódio.
É uma história bonita.
A honestidade de um pobre, devia ser exemplo, para muitos senhores de colarinho branco!

César Ramos disse...

Caro Rafael,

Quero que saiba que, sendo leitor assíduo do seu blog, fico sempre constrangido por aproveitar a sua linda - e útil - escrita, sem comentar.

Acontece que os retratos humanos que nos relata são de tal intensidade, que não seria capaz de os comentar com duas ou três linhas apenas... e, acho um abuso gastar-lhe tempo e espaço com as patacoadas dos meus raciocínios.

Não imagina como adoro a carreira onde trabalha: morei na Estrela e era 'esse' o eléctrico que me transportava para a Graça, ao Liceu Gil Vicente.
Foi 'nesse' eléctrico que aprendi a descer em andamento - na 'broa'-, junto aos bombeiros da Graça[atletismo de lisboeta antigo!]...

Não calculava que tem um "pendura" permanente no seu eléctrico e no blog?

Foi muito bom e muito bonito o «retrato» do "maltrapilho" que aqui nos oferece. Grande exemplo de honestidade que este Senhor mal vestido deu... Até parece um daqueles - já lhes perco o conto - que, enfatuados e bem alimentados andam às turras com as autoridades, clamando inocência por todos os poros, negando roubos, desfalques, corrupção e outras habilidades de colarinho branco e chapéu alto!

Bem pode o Rafael afirmar que, ontem, transportou um verdadeiro Cavalheiro (...)

Um grande abraço
César Ramos

Rafael Santos disse...

É verdade caros leitores,

Esta, foi sem dúvida uma enorme lição de vida! E para si César, obrigado pelas suas palavras e deixe-me que lhe diga que também eu fui um aluno vicentino. Fiz lá a minha escolaridade!

Cumprimentos,

Rafael Santos

Filipe disse...

Muito bom.
No final da leitura ainda tive de reler, para ver se de facto teria percebido bem.

Como disse o sr César Ramos: um verdadeiro cavalheiro.

prlinpinpin disse...

Sabe sempre bem ouvir (ler)uma historia desta. Sou daquelas pessoas que dou pouco valor a estatutos socias, as pessoas para mim valem pelo são e não pelo estatudo, dinheiro ou classe social ;)
;)

(sou uma das minhotas dos aluguers)

César Ramos disse...

Caro Rafael,

Fiquei muito satisfeito por saber que também é Vicentino. Aquilo foi e é uma grande Escola!

Faço parte da Liga dos Antigos Alunos do Gil Vicente. É bom nunca esquecer e rever os antigos colegas, que é o que fazemos duas vezes por mês.


Saudações Vicentinas!
Abraço
César Ramos

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