sexta-feira, 26 de março de 2010

Na 18E afinal, «a tradição ainda é o que era»

Após mais uma semana de trabalho, chego à conclusão que sou um privilegiado. Claro que ficaria mais feliz se me tivesse saído hoje o Euromilhões e não necessitasse de trabalhar, mas como tal não aconteceu, só o facto de ter um trabalho onde faço o que realmente gosto e ainda me pagarem, já me deixa satisfeito. Depois para além do trabalho está o convívio com os colegas e com os passageiros, embora hajam passageiros mais simpáticos que outros.

Uns ignoram-nos, outros desprezam-nos, mas outros há que nos têm já como família. Alguns chegam mesmo a partilhar connosco momentos marcantes das suas vidas, mesmo sem que tenhamos perguntado algo. São desabafos, são confissões, são partilhas de histórias e episódios do presente e do passado.

Se no centro da cidade o trânsito desta sexta-feira era caótico, muito por causa de uma manifestação, na Ajuda a acalmia marcante do terminal da carreira 18E, permitia ouvir o som dos pássaros numa tarde que prometia chuva mas que acabou com sol. Na calçada da Ajuda o sentinela da guarita do quartel da GNR mete-se em sentido. Em direcção ao eléctrico correm os putos que tentam apanhar boleia do eléctrico, mas à pendura. Atentos, os soldados contraria-os.


Na paragem seguinte entra um casal na casa dos 70 anos. Com traje a fazer lembrar esses mesmos anos, dizem «boa tarde sr.guarda-freio» - coisa rara nos tempos que correm em que chamam motorista a tudo e todos.

Sentam-se no lado direito do eléctrico. A senhora no banco mais à frente e o seu marido no banco imediatamente a seguir. Sobre a janela espreitam o jardim botânico e comentam o aspecto crispado que o Rio Tejo, ao fundo apresenta. Rumo à Boa-Hora degustavam rebuçados que após os comentários que ia ouvindo ainda tentei ver através do espelho, de quais teciam grandes elogios.


«Estes de Seiva de Pinheiro, são fantásticos Antonieta!», dizia o senhor à esposa referindo que eram os verdes. Embora concordasse com a opinião do marido, a senhora lá foi dizendo que os azuis também eram saborosos. Contudo, o que a senhora queria mesmo era desfrutar da viagem que lhe fazia «lembrar quando passeávamos aos domingos naqueles eléctricos que ainda eram abertos e tinham cortinas de pano», dizia, ao mesmo tempo que acrescentava que «agora não estou cá. Vais caladinho que eu também vou...»

Até ao Cais Sodré lá foram, mas o desafio ficou-se pelo Calvário quando o marido se lembrou dos tempos em que ali apanhavam o «o 15 até Belém naqueles eléctricos grandes, mas dos antigos, para irmos comer um pastel e beber um chá».

Precisamente no Calvário, outros passageiros vão entrando e acomodando-se no interior do eléctrico que num instante se enche de jovens e velhos com destinos diferentes. A 24 de Julho corre pelas janelas quase à velocidade com que o comboio que vai para Cascais passa, logo ali ao lado.

Chagámos pouco depois ao Cais do Sodré e parecia estarmos noutra cidade. As buzinas, os apitos, a agitação de uma tarde de sexta-feira e uma manifestação que ajudou a entupir as artérias mesmo no centro da cidade, causando atrasos nos transportes.

A viagem terminava na R.Alfândega. Rodo a tela dos destinos e de novo a "Ajuda" a aparecer na bandeira do eléctrico. Era a penúltima viagem do dia, mas ainda a tempo de ouvir uma passageira já com alguma idade dizer-me que estava muito feliz porque no seu tempo «diziam que a 2000 chegarás, mas de 2000 não passarás»
, ouve-se de tudo e quando menos se espera, num transporte público.

Chegava então ao fim mais um dia, mais uma semana, e desta feita com a curiosidade de saber quais seriam os tão falados e gabados rebuçados de Seiva de Pinheiro. Escrevi então num papel para que não me esquecesse e agora após pesquisa na internet, vejo que cabe ao Santo Onofre (passe a publicidade), a responsabilidade de manter tais sabores e aromas há quase 75 anos e sob o slogan que «a tradição ainda é o que era».

Slogan este que também me deixa a pensar na viagem da recolha quando na Rua da Bica do Marquês, uma jovem brasileira após eu ter aberto a porta da frente, começa a gritar reclamando que «estou há 40 minutos à espera de um transporte, está brincando com a minha cara é? Acabei de perder um exame. Nem estou acreditando! Você acabou de arruinar minha vida», o que prova que após longas semanas sem ouvir reclamações nestes tons e sem o mínimo de respeito, a tradição ainda é o que era...

Boas Viagens e bom fim-de-semana!

Imagens: Rafael Santos e Santoonofre.com

6 comentários:

André Bravo Ferreira disse...

Ah pois, tu é que tens culpa do que aconteceu à brasileira. E sair mais cedo de casa?

Só fazes inveja para querermos passear de eléctrico ah ah ah

Abraço.

aras disse...

Sr.Guarda-freio.....adorei os detalhes da tua sexta feira! É curioso o contraste.
Bom fim de semana

Angelo disse...

Como se tu tivesses culpa!

E, se me permites, diz-se "passeavamos" e afins. Basicamente nunca se separa o "-mos".

E, por favor, continua a presentear-nos com estas histórias fantásticas!

Anónimo disse...

Haverá sempre quem reclame pelos atrasos que eles próprios originaram, mas terás sempre os passageiros sorridentes com boas histórias que animam o dia e que nos fazem continuar a gostar daquilo que fazemos!

Um bem haja!

Carla N.

CR 35 disse...

Rafael,por tua causa a menina vai repetir o exame ,mas assim vai mais bem preparada para o mesmo e vai tirar pelo menos um 18 ,é pena os velhotes não te passarem para as papilas gustativas alguns rebuçados para depois explicares à nossa irmã de Terras de Vera Cruz o quanto é bom para acalmar a Seiva de Pinheiro,receita de Santo Onofre .Sobe e desce por essas colinas de Lisboa a bordo dos veículos da CCFL preparado com uma flor para ofereceres às meninas de Lisboa mais afinadas devido aos atrasos ,para sorrirem com o teu gesto .

Anónimo disse...

essa ideia do cr35 até que nem é má :-), passas ali na ribeira e logo á entrada vais á minha tia que ela há-de ter flores para deitar fora eh eh eh...
marques

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