A Carris completa hoje 140 anos de existência. Os
transportes públicos da cidade de Lisboa estão de parabéns, assim como os seus
funcionários, utentes e a própria cidade de Lisboa, dado que a história de
Lisboa está profundamente ligada, há mais de um século, à Carris de Ferro, nome
sugestivo e herdado da era em que o ferro e o aço compunham a modernidade de
uma era. Importa portanto, numa data comemorativa como esta, abordar o passado
e recordar que «a associação que
Francisco Maria Cordeiro de Sousa e Luciano Cordeiro de Sousa incorporam nesta
capital [Rio de Janeiro], sob a denominação de Companhia Carris de Ferro de Lisboa,
constitui uma sociedade anónima e tem por fim o estabelecimento de um serviço
regular para transporte de passageiros e cargas em carros puxados por animais
sobre trilhos de ferro nas ruas e arrabaldes da cidade de Lisboa, sujeitando-se
em todas as suas operações em Portugal às leis e tribunais portugueses, em
todas as questões derivadas de transacções ou operações efectuadas em Portugal
em que for autora ou ré, assim como a todos os actos que as leis civis,
comerciais, administrativas ou fiscais regulam», referiam os estatutos da
empresa, publicados nos Actos do Poder Executivo nº5087, de 18 de Setembro de
1872, no Rio de Janeiro.
Começava então a aventura em torno da nova empresa
criada pelos irmãos Cordeiro de Sousa em meados do séc. XIX, quando Lisboa era
em confronto com a restante Europa, uma capital de relativamente modestas
proporções. Obtida a licença definitiva para estabelecimento dos Caminhos de
Ferro americanos em Lisboa, a 17 de Novembro de 1873 é inaugurada a primeira
linha de "americanos" entre a Estação da linha Férrea Norte e Leste
(Stª. Apolónia) e o então extremo Oeste do Aterro da Boa Vista (Santos). Os
“americanos” passavam a fazer parte do dia-a-dia da cidade e a partilhar as
ruas com inumeráveis pessoas a pé, a cavalo, em burro, entre outros. «O sucesso que lhe seguiu, conjuntamente com
a expansão da rede, com os aumentos verificados na frota e com o número de
animais de tracção, desde logo conduziram à necessidade de obtenção de
instalações permanentes, amplas, e devidamente apetrechadas, já que os terrenos
até então utilizados para esse efeito não preenchiam todos os requisitos
necessários. Em 1874, após longa pesquisa foi adquirida uma propriedade que,
albergando o Asilo D. Luis I, fora já dos Condes da Ponte e onde foi possível a
criação da Estação de Santo Amaro à qual, a breve trecho, se seguiria a do Arco
Cego».
Mas a chegada dos “americanos” trouxe rapidamente
concorrência e para a combater a Carris viria a alterar a sua bitola para 90
centímetros, no final do séc. XIX, como modo de evitar que as empresas
concorrentes, possuidoras de carros com eixos de maiores dimensões,
continuassem a utilizar os carris que a empresa assentara para circulação dos
seus carros, ao mesmo tempo que se pensavam já noutras medidas. Foi então «decidida a adopção de carros eléctricos tendo
a Carris obtido o privilégio exclusivo para o perímetro que explorava, do
sistema denominado "Electricidade por condutores eléctricos com motor".
Em 1900 tiveram início os trabalhos necessários à sua implantação com
assentamento de novos carris, lançamento da rede aérea e construção de uma
fábrica de electricidade capaz de fornecer toda a energia necessária ao seu
normal funcionamento; conhecida simplesmente por GERADORA estendia-se por uma
área de 6.102 m2 e era composta pela Casa das Caldeiras, Casa das Máquinas,
Casa das Baterias e Depósito de Carvão».
E muito rapidamente os eléctricos substituíram os “americanos”.
«Na madrugada do dia 31 de Agosto de 1901
começou a funcionar a primeira linha de carros eléctricos que se estendia do
Cais do Sodré a Ribamar (Algés). Citando um jornal da época "a inauguração
da tracção eléctrica satisfez completamente o público que, em grande número,
concorreu a presenciar o importante melhoramento, a elegância luxuosa dos
carros, a comodidade que oferecem aos passageiros e a rapidez da marcha".
Por volta de 1905 já toda a rede estava electrificada tendo os "Americanos"
desaparecido das ruas de Lisboa».
Mas os anos seguintes seriam algo conturbados em Portugal.
Deu-se o Regicídio e surgiu a I República, e deu-se portanto um misto de
realizações desencontradas, causando entusiasmos e frustrações. A cidade de
Lisboa crescia, pelo que se via nos resultados demográficos e no aparecimento
dos bairros populacionais. E nos anos 30 a Carris respondia com a aquisição de
mais eléctricos, «adquiridos nos Estados Unidos ou
construídos nas oficinas da empresa, ao alargamento da rede sendo de salientar
a linha da Graça dado o seu percurso por muitos considerado impraticável e ao
nascimento de mais uma Estação, a das Amoreiras, inaugurada em 1937 e destinada
não só a servir a rede de eléctricos, mas também a já prevista rede de
autocarros que veio a ser inaugurada em 9 de Abril de 1944».
Lisboa vivia o auge dos eléctricos depois do
aparecimento daquela que viria a ser a linha mais importante na ligação da
periferia ao centro, a carreira 15 que começou por utilizar dezasseis carros
abertos. Recordo que foi nesta linha que
teve lugar o caricato episódio do carro 355 que ficaria apelidado de “Afonso
Costa” e que até há bem pouco tempo estava perto dos lisboetas, na Praça do
Comércio, servindo de apoio à venda e informação de títulos de transporte da
CarrisTur. Se no início poucos pareciam estar seguros quanto à utilização dos
eléctricos, o certo é que eles vieram para fazer parte do quotidiano da cidade
que crescia consoante o crescimento das linhas, até que surgiram os autocarros.
Com efeito pode dizer-se que a «Companhia Carris, através da implantação de três carreiras, deu início
a um serviço que, com o passar dos anos, viria a suplantar o de eléctricos e
afirmar-se como o mais importante meio de transporte da cidade de Lisboa na 2ª
metade do séc.XX; foram elas: carreira nº 1, Cais do Sodré-Rotunda carreiras nº
2 e 3, P. do Comércio-M. Bombarda, alternadamente pelas ruas Rodrigo da Fonseca
ou Duque de Loulé. Para apoiar este serviço surgiu, em 1958, a Estação de Cabo
Ruivo».
Os anos seguintes foram de alterações com a
política da empresa a apostar no fim dos eléctricos a curto prazo,
substituindo-os por autocarros, também com a ajuda do aparecimento do
metropolitano e o aumento do uso do transporte particular. Mas em «1974,
verificada a necessidade urgente de rejuvenescer a frota de autocarros, foi
aberto concurso para o fornecimento de
200 novas viaturas que, tendo começado a ser entregues no ano seguinte, mercê
da cor que ostentavam, imediatamente foram apelidados de "laranjas"».
Surgiram assim as Estações da Pontinha em 1975, da
Musgueira em 1981 e o Complexo de Miraflores que teve no dia 19 de Junho de
1983 o privilégio de receber a visita de Sua Excelência o Senhor Presidente da
República naquela que foi a primeira visita realizada pelo mais alto magistrado
da Nação a instalações da Companhia Carris. Já nos anos 90, para além da
entrada ao serviço de novos autocarros (médios, articulados e
"minis"), assistiu-se a um interesse renovado pelo modo eléctrico
traduzido na aquisição de 10 eléctricos articulados, nos quais, à tecnologia de
ponta e elevados níveis de conforto se alia uma grande capacidade de transporte
e na renovação de 45 eléctricos tradicionais que, numa feliz união, conjugam o
respeito pela traça original com os mais modernos equipamentos electromecânicos.
Se em 2004 e 2005 a empresa prosseguiu a política
da renovação da sua frota de autocarros, reduzindo assim a sua idade média, em
2006 obteve a certificação, um ano marcado por alterações significativas na
estrutura da empresa, que viria a iniciar a certificação de produtos, a
realização do primeiro relatório de sustentabilidade, a publicação do código de
ética e de conduta, tendo adquirido também neste ano 100 novos autocarros. No
ano seguinte a Carris assinou a Carta Europeia de Segurança Rodoviária e tinha
em processo a certificação de mais 18 carreiras. 2009 marcou a chegada de 60
novos autocarros, sendo que 40 são Euro 5 a Diesel e 20 a Gás Natural EEV.
Foram certificadas mais 12 carreiras e iniciou-se uma abordagem webmarketing
com lançamento do novo site da CARRIS e desenvolvimento de presença em redes
sociais. É ainda neste ano que se dá início ao movimento “Menos um Carro”.
O
ano de 2010 assinala a nomeação da Carris como uma superbrand, ao mesmo tempo
que se conclui a terceira fase da Rede7 e se lança a campanha «Andamos a pensar
em si», através dos media. Já em 2011 A CARRIS testou nas ruas da cidade de Lisboa, durante um mês, um autocarro híbrido de nova geração da
Volvo 7700 Hybrid e lançou, em parceria com a EMEL, a EMPARQUE e o Metropolitano
de Lisboa um novo título de transporte, o sistema «park&ride» recarregável, que permite usufruir de
estacionamento e utilização dos transportes públicos.
Estamos
agora em 2012 e neste ano em que se assinalam os 140 anos de vida e história da
Carris, dá-se a junção das duas empresas de transporte em Lisboa, a Carris e o
Metro que passam agora a ter uma administração conjunta, por indicação do
governo português. Os dois últimos anos não têm sido fáceis e se provavelmente,
os irmãos Francisco e Luciano Cordeiro de Sousa, não contariam que a aventura
por eles criada durasse mais de cem anos, certamente também não acreditariam
hoje, se lhes dissessem que a empresa que criaram estaria agora junta com o
Metro, que durante anos tem vindo a acabar com os transportes de superfície,
imprimindo mais rapidez nas deslocações diárias, porque a cidade de Lisboa
também ela não tem sabido corresponder nos últimos anos às dificuldades
sentidas por quem tem de partilhar vias com quem nem sempre respeita o transporte
que é público e amigo do ambiente.
Ainda
assim e apesar de tudo, a Carris está de parabéns. Os seus trabalhadores, grupo
este no qual tenho o prazer de me incluir, também estão de parabéns por terem
sabido ao longo de anos ultrapassar os obstáculos que lhes têm sido colocados
em prol de um transporte de passageiros numa cidade com as características da
cidade de Lisboa. Parabéns Carris!
Fonte:
“História
da Companhia Carris de Ferro de Lisboa em Portugal”, volumes 1,2 e 3, edição
Carris.
Site
da Carris – www.carris.pt
Arquivo
«Diário do Tripulante»
Fotos:
www.carris.pt
"A minha página Carris", de Luís Cruz-Filipe
Olle S.Nevenius
NationalGeografic.com
Tim Boric
Phil Trotter
Arquivo «Diário do Tripulante»
3 comentários:
Parabéns e que continue por mais uns valentes anos com ou sem junção ao Metropolitano
Algumas fotografias bem "saborosas" (parabéns!). Desperta-me especial atenção a segunda, a seguir à do "Americano", com a Estação de Santa Apolónia ao fundo. Foi tirada numa época em que eu tinha possibilidade de dar um passeio de eléctrico practicamente quando me apetecesse, pelos meus 16-17 anos, coisa disso. A fotografia mostra uma fase das obras que desviaram a implantação dos carris para junto dos lancis do passeio, vendo-se ainda a antiga linha, ainda a funcionar, ao lado da linha nova, ainda não activada. Passei por lá nessa altura e logo depois, com a linha "velha" já desactivada mas ainda não removida... A curiosidade é que foi o primeiro troço assente em sapata de betão em vez dos anteriores barrotes de madeira. E notava-se a diferença pelo ruído das rodas ao passar sobre um ou outro tipo de suporte. Foi giro...
Coisa curiosa, o eléctrico comprido, o 355, que aparece na fotografia a cores, foi "baptizado" pelos guarda-freios da Carris com o nome sugestivo de "Afonso Costa", o político republicano que, em Junho ou Julho de 1915, nele viajava quando, na Av. 24 de Julho, à velocidade máxima, "a 9", a "breca" disparou ("breca": o disjuntor instalado no interior do tejadilho, sobre a cabeça do guarda-freios, que "disparava" quando havia sobrecarga eléctrica)com o habitual estrondo da ressonância da madeira, e o dito Afonso Costa, pensando que fosse uma bomba, se atirou pela janela do eléctrico e fugiu, 24 de Julho afora, largando o casaco e o que nele havia. Dezenas de anos mais tarde, tive na mão o bilhete de identidade do dito Afonso Costa, recolhido com sabor de vingança por um cavalheiro que também seguia no eléctrico e me foi mostrado pelo filho, um senhor já falecido, de seu nome Daniel, "companheiro de carteira" do meu Pai no Liceu Passos Manuel. Afonso Costa, conforme o BI (em folha de papel, dobrado em três, e com capa de cartão), tinha olhos castanhos, salvo erro a altura de 1,48m, e exercia, à época, o cargo de presidente do Ministério (primeiro-ministro) da República Portuguesa. Pergunto-me se o filho do Daniel, chamado Diogo, aliás com notável parecença fisionómica com o Pai, ainda conservará o BI do Afonso Costa...
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