Lisboa, 15 set (Lusa) - Dentaduras no chão, um 'chinelómetro' e
diferentes tipos de passe são alguns dos ingredientes das melhores
peripécias do dia-a-dia do tripulante da Carris Rafael Santos, que desde
junho podem ser lidas em livro.
Ainda estava na formação para ser motorista da Carris e Rafael
Santos, de 29 anos, já era alertado pelo formador das muitas histórias
que iria ter para contar. Mas foi apenas quando começou a contar o seu
dia-a-dia a amigos e familiares que percebeu que a sua vida daria, pelo
menos, um blogue.
"Ia no 708 com destino ao Parque das Nações e alguém me diz que tinha
uma placa no chão. Eu pensava que era uma daquelas molduras de
informação, quando fui a ver era mesmo uma prótese dentária. Alguém
tinha perdido os dentes! No primeiro olhar parecia uma goma, que aquilo
estava tão gasto. Quando cheguei ao terminal entreguei nos perdidos e
achados, mas não sei se foi lá alguém buscar", conta, entre risos Rafael
Santos.
O blogue http://diariodotripulante.blogspot.pt/ "começou por
brincadeira" e para "dar a conhecer o trabalho de quem conduz milhares
de pessoas por Lisboa diariamente".
Uma das personagens recorrente nas histórias deste guarda-freio é o
turista, do que mistura o francês com o português ao que quer ir para o
"Castelo dos Jerónimos".
Mas Rafael Santos destaca a participação de um turista numa
interrupção na Rua de São Paulo, onde dois elétricos não conseguiam
passar, devido a um carro mal estacionado.
"O turista devia achar-se mais experiente do que nós [guarda-freios].
Saiu do elétrico, sacou do chinelo, ou 'chinelómetro', e foi medir a
distância entre o elétrico e o carro, para nos dizer que efetivamente
não passava", conta.
Pertencendo à empresa com uma das taxas de acidentes mais reduzidas
da Europa, o guarda-freio admite que os problemas com carros mal
estacionados quase que o levaram a distribuir folhetos com artigos
essenciais do código da estrada. De uma vez, na Estrela, quase que
passou por polícia.
"O tipo ia ultrapassar pela direita comigo parado na paragem, com os
passageiros sujeitos a serem atropelados. Como o 15 tem um microfone que
dá para falar para a rua, gritei: 'Atenção à ultrapassagem pela
direita!' Ele assustou-se, deve ter pensado que era a polícia e parou
logo, a olhar para todo o lado", descreve.
As histórias sucedem-se: das discussões por causa de um lugar
reservado, passando pelos passageiros que conhecem o administrador e
pelas senhoras arranjadas que cortam as unhas no elétrico, aos
preservativos encontrados nos últimos lugares.
"Acontece-nos de tudo!", responde.
No entanto, e porque há histórias que se repetem por várias vezes,
Rafael Santos e uma colega decidiram atribuir sete novos nomes aos
passes usados na Carris: passe Raspadinha (que é "raspado
desesperadamente na máquina até que dê sinal"), o Familiar ("entram um
grupo e só um é que valida"), o Saudação ("entra, cumprimenta o
guarda-freio e vai-se sentar), o Analfabeto ("está inválido e a máquina é
que não funciona"), o Surdo ("não faz som e vai-se sentar") o Espanhol
("carrega em todo o lado e só depois valida") e o Livre-trânsito (compra
um bilhete e usam várias vezes).
Num tom mais sério, Rafael Santos destaca a vertente de "apoio
social" prestado pelos motoristas da Carris aos idosos de Lisboa que o
Diário do Tripulante, tanto o blogue como o livro, pretendem mostrar.
"As pessoas de manhã acordam para ir à junta de freguesia, depois vão
ao supermercado e vinham no autocarro, depois iam ao centro de saúde… E
acaba por ganhar-se uma certa afinidade. E há as pessoas que por falta
de companhia passam ali o dia. Somos a companhia deles, até nos trazem o
lanche de vez em quando", diz Rafael Santos.
"Somos ainda o muro de lamentações de muitas pessoas", considera.
Mas mesmo entre os motoristas, Rafael Santos afirma que "a situação
não está fácil", sobretudo quando os trabalhadores vivem com "condições [económicas]
cada vez piores", mas atribui as culpas à crise que o país vive.
Apesar das dificuldades, Rafael Santos sublinha que gosta muito do
que faz, principalmente agora que conduz o seu elétrico preferido, o 28.
"É a montanha russa da cidade. Está sempre a subir e a descer, passa
por vários pontos turísticos da cidade. As pessoas dizem que o bilhete
(2,85 euros) é muito caro, e eu respondo: Mas andam aqui no museu ao ar
livre, corre todos os monumentos da cidade, anda como se tivesse na
feira popular, que já acabou, o que é que quer mais?", brinca.
Texto: Susana Paula (Lusa)
Fotos: Miguel Lopes (Lusa)
1 comentário:
Nem mais ! perfeito! agora toca a comprar o livro para saberem o resto das aventuras a bordo dos amarelos ....da montanha russa!
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